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Artigo

A Eterna Ligação Entre Cinema e Televisão

por Diego Quaglia
18/06/2023
A Eterna Ligação Entre Cinema e Televisão

O CINEUSP, cinema localizado na Universidade de São Paulo, fez uma mostra esse ano chamada "Da Telinha Pra Telona" que tem como objetivo mostrar o contato da televisão com o cinema durante os anos. Isso, entre outras coisas como a minha participação no programa do "SeriousCast" sobre "Além da Imaginação", me inspiraram a fazer um texto aqui sobre o contato da televisão e do cinema. Contato esse que muitas vezes é visto de forma rasa tanto pelos entusiastas de televisão e cinéfilos que se opõem a ele por um purismo meio bobo e extremista. Claro que dói aos ouvidos quando um showrunner diz que a sua série é "um filme de não sei quantas horas" pra estabelecer um valor nele (como se a televisão fosse algo "menor" ao cinema e não pudesse por si só ter um valor como uma série), assim como dói ver "Twin Peaks: The Return" ser vista como um filme numa lógica que "ah isso é tão maravilhoso e fora dos parâmetros que não pode ser uma série" (outra bobagem), mas também dói ver a resistência ao fato que a televisão e o cinema podem sim se cruzar e sempre se cruzaram e isso pode fortalecer os dois formatos entendendo que ambos têm possibilidade de força cada um do seu jeito.

Não é querer que a televisão seja cinema ou o cinema seja televisão como qualquer filme vagabundo da Globo Filmes tenta ao transformar filmes em séries do Multishow ou em sub Zorra Total ou numa sub novela – se você quer ver uma novela, veja a novela e o melhor do que a novela possibilita dentro do que ela é. Se você quer ver um filme, veja um filme dentro do melhor que ele te possibilidade. Transformar simplesmente um totalmente no outro é só o resultado de "aberrações" –, mas sim entender que ambos podem se beneficiar de influências e intersecções. Intersecções essas que não vêm de hoje. A maior coisa já feita na televisão provavelmente, "Twin Peaks" (1990–1991, 2017), revolucionou ela justamente pela aplicação do estilo puro de um autor cinematográfico (David Lynch) dentro do formato televisivo com a parceria de um já conhecido homem de televisão (Mark Frost). "Twin Peaks" ofereceu um tipo de narrativa contínua e não serializada, um humor, uma estranheza, uma trilha sonora, uma mistura de gêneros, um surrealismo, uma ousadia temática e uma violência que não eram comuns na televisão. Até chegar no revival de 2017 em que as possibilidades do formato foram totalmente desafiadas numa narrativa absolutamente experimental e genial.

É bom que se diga que Lynch não foi o primeiro autor do cinema a explorar as possibilidades da televisão: Bergman já havia feito isso (o que levou à criação de uma das suas obras-primas, a minissérie "Cenas de um Casamento"), Rainer Werner Fassbinder (em "Berlin Alexanderplatz" e outras minisséries), Roberto Rossellini nos vários telefilmes e minisséries históricas que realizou para a televisão italiana nas décadas de 60 e 70, Jean-Luc Godard na sua série documental "História(s) do Cinema" (1988–1998), Krzysztof Kieślowski em "Decálogo" (1989, o mesmo ano de "Twin Peaks"), Maurice Pialat em "La Maison Des Bois", claro Alfred Hitchcock na sua antologia de histórias de suspense "Alfred Hitchcock Presents" (1955–1965), entre outros, mas o que havia antes eram exemplos muito espaçados ou então presentes na Europa. E a influência não é apenas a de profissionais de cinema experimentando o formato da televisão, mas também de profissionais da televisão chegando ao cinema.

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Na década de 50 e 60, a televisão norte-americana passou por sua primeira era de ouro. Antologias produzindo teleteatros ao vivo, sitcoms lendárias como "I Love Lucy" e os desenhos da "Hanna-Barbera" mudaram para sempre a animação na TV. Além disso, o gênero de faroeste começou a ascender na TV com séries como "Bonanza", ameaçando a soberania do cinema. O cinema teve que apostar em várias estratégias para competir com a televisão, lançando épicos arrasa-quarteirões como "Ben-Hur" de 1959 e explorando tecnologias como o Cinemascope.

Nesse momento, a televisão abrigou uma série de profissionais que, nas décadas seguintes, migraram para o cinema e se tornaram grandes autores e diretores extremamente talentosos. Entre eles, destacam-se Sidney Lumet, Sam Peckinpah, Robert Mulligan, John Frankenheimer, Arthur Penn, Martin Ritt, Franklin J. Schaffner e George Roy Hill, entre outros. Mel Brooks, antes de fazer seus filmes de comédia, criou na televisão a sátira de espionagem "Agente 86". "Além da Imaginação" também surgiu como uma das coisas mais revolucionárias já feitas na televisão americana até então, contando com os melhores técnicos da televisão para dar vida à sua criação.

Durante esse período, muitos cineastas trabalharam na televisão antes de se tornarem lendários diretores. Don Siegel e Richard Donner dirigiram episódios de "Além da Imaginação" antes de fazerem seus filmes icônicos. Jovens como Steven Spielberg, Bob Rafelson e William Friedkin também tiveram oportunidades na televisão antes de se tornarem cineastas consagrados. Até mesmo em obras mais comerciais, é possível ver a intersecção entre cinema e televisão, com produtores como Irwin Allen, conhecido por séries como "Perdidos no Espaço", que se tornaram nomes importantes no gênero de desastre no cinema dos anos 70. Jerry Bruckheimer, produtor de franquias como "CSI" e séries como "Cold Case", também teve uma carreira de sucesso tanto na televisão quanto no cinema.

Um dos melhores telefilmes da história, inclusive, foi feito pelo próprio Spielberg com "Encurralado". Essas obras desafiaram a linguagem do telefilme e aproveitaram seu potencial para criar grandes trabalhos artísticos. O preconceito que coloca a televisão como algo "menor" decorre, em parte, de uma generalização que categoriza a TV como sempre medíocre e pasteurizada. No entanto, a história mostra que existem muitos filmes genéricos e pobres em linguagem, assim como obras televisivas ricas que exploram as possibilidades da linguagem e brincam com o tradicionalismo da televisão.

O canal HBO, por exemplo, mudou as estruturas da narrativa televisiva com séries como "Oz", "Sex and the City" e "The Sopranos", consolidando uma mudança de paradigma. Embora existam diferenças entre a experiência de imersão em uma tela grande e uma tela pequena, a imersão é possível e forte em ambas. A história também mostra que sempre houve milhões de filmes genéricos e obras televisivas mais ricas, seja por experimentarem mais as possibilidades da linguagem ou por compreenderem o tradicionalismo da televisão para brincarem com ele.

Dessa forma, a televisão e o cinema têm uma relação complexa, com influências e intersecções ao longo da história. Ambos os meios têm produzido obras de qualidade e obras mais comerciais, e é importante reconhecer a diversidade e o potencial criativo de cada um.

Michael Mann é, de fato, um dos grandes talentos do audiovisual contemporâneo. Sua abordagem única na série "Miami Vice" desafiou os padrões da televisão americana, apostando em uma construção sensorial e estilizada que explorava as emoções e energias das imagens, influenciadas tanto pela cultura dos videoclipes dos anos 80 quanto pelo cinema de vanguarda europeu. Mann também foi ousado em "Crime Story", uma série policial ambientada nos anos 60, que apresentava uma narrativa contínua e estilizada, inspirada na guerra entre um policial veterano e um mafioso em ascensão. Sua série foi uma referência para David Chase na criação de "The Sopranos".

No contexto da televisão brasileira, também há exemplos de profissionais que navegaram entre o cinema e a televisão, contribuindo para romper as barreiras entre os dois meios. Autores como Silvio de Abreu, Antônio Calmon, Daniel Más, Marcos Rey, Benedito Ruy Barbosa, João Emanuel Carneiro, Aguinaldo Silva, Lauro Cesar Muniz e José Louzeiro tiveram passagens relevantes tanto no cinema quanto na televisão. Alguns diretores de cinema, como Roberto Farias e Carlos Manga, também dirigiram obras de destaque na televisão brasileira, demonstrando seu talento em ambos os meios.

Além disso, diretores-autores como Guel Arraes, Jorge Furtado e Luiz Fernando Carvalho exploraram os limites do audiovisual televisivo brasileiro, experimentando com texto, narrativa, edição, visual e questões cênicas. Cao Hamburguer, Anna Muylaert e Fernando Meirelles tiveram inícios de carreira na televisão e continuam envolvidos nesse meio até hoje. A inspiração no cinema também desempenhou um papel importante na criação de novelas, como no caso de Gilberto Braga.

A relação entre televisão e cinema tem se mostrado cada vez mais fluida e permeável, com diretores renomados transitando entre os dois meios e trazendo suas influências e visões pessoais para a televisão. Cineastas como Lars Von Trier, Mike Nichols, Jane Campion, Steve McQueen, Spike Lee, Todd Haynes, Ava DuVernay, Marco Bellocchio, David Fincher e outros têm contribuído com o enriquecimento das possibilidades da televisão. Ao mesmo tempo, profissionais da televisão também têm migrado para o cinema.

Hoje em dia, as fronteiras entre televisão e cinema são cada vez mais tênues, sendo uma questão de adaptação ao formato. As linguagens audiovisuais são compartilhadas, mas o envolvimento e a experiência do público podem variar de acordo com as ferramentas específicas de cada meio. É importante reconhecer e apreciar o que cada um tem a oferecer, sem ferir suas respectivas diferenças. A mistura e intercâmbio entre televisão e cinema podem resultar em obras de qualidade e em experiências enriquecedoras para os espectadores.

Autor

Diego Quaglia

@diegoquaglia2

Arte é algo maravilhoso, audiovisual é o que mais me atrai e as séries são parte dessa paixão.

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